quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A Jardineira Encantada


           “Isso é coisa de velho maluco, que não tem o que fazer”, às vezes é o que me vem à cabeça! Tenho sido severo comigo, até com excessivo rigor, na busca por impor limites aos devaneios da mente, que habita esse corpo cansado, e que não há de permitir jamais ser chamada de mente senil. A cada ano que passa, e cuidem que já são muitos, o arquivo das lembranças recentes vai virando um balaio de gatos, levando-me a permanecer em incômodo estado de alerta. Assim haverei de agir, pra não permitir aos outros que possam me corrigir, e de um jeito mais cruel.

           Já não me surpreendo mais, ao flagrar meus pensamentos, na busca por lembranças passadas, contemplando com benevolência os eventos mais antigos, e deixando em segundo plano os fatos contemporâneos. Nas prateleiras da mente, parece que antiguidade é posto. Aquele que chegou primeiro garante cadeira cativa. É bom que isso seja igual na cabeça de todo o mundo, pra que não me chamem de insano.

           As minhas mais doces lembranças (desculpem-me a recaída) remontam aos tempos da infância, onde cada minuto vivido resplandece em minha mente, como se fosse o dia de ontem. A história que vou contar tem muita coisa em comum com a história de muitos outros, pessoas que têm saudade de outros tempos passados, onde a inocência da alma e a pureza dos sentimentos comandavam nossos atos e encantavam os corações. Muito do que será narrado tem como coadjuvante discreto uma velha jardineira, que nunca saiu da minha mente. “A jardineira encantada”.

            “Dezembro de 1958, madrugada. A noite parecia infinita, e nem por um minuto sequer consegui pregar os olhos.
Lá longe, a todo instante, ouvia o apito teimoso do trem, me avisando insistentemente que era chegado o momento de preparar as bagagens, e dar início à viagem. Mal podia esperar a hora, era assim todas as vezes, para mim e para os demais. Éramos seis irmãos pequenos, três homens e três mulheres, e como acontecia sempre, no período de férias escolares, a ansiedade era enorme pra botar o pé na estrada e reencontrar os primos queridos, que viviam naquele sítio longínquo, às margens da estrada de ferro.

             Finalmente embarquei no trem, grudado na mão de meu pai. Da plataforma, lá fora, ouvi o primeiro apito, pelo chefe da estação, que se repetiu por mais duas vezes, intercalado pelo apito choroso da “Maria Fumaça”. Era o sinal de partida. E lá fomos nós, em êxtase, rumo ao “sítio do Tio José”. Corria pelos vagões, pendurava-me nas plataformas, para ver melhor a paisagem, gostava de ver as árvores passando, era tudo uma alegria só. Enquanto isso meu pai, sob o olhar crítico de minha mãe, conversava com o passageiro do lado, um gordo vestido num terno de linho branco, com cara de gente rica, “tubarão” como dizia meu pai. Lembro-me que dizia ao homem sobre uma tal de reforma agrária, que iria distribuir aquelas terras, por onde passava o trem, “terras de muita fartura”, para os lavradores mais pobres. Acho que não conseguiu convencê-lo de que seria uma boa ideia!

            -Passageiros com destino a Silvânia, Caraíba, Roncador e Ponte Funda, favor apresentar as passagens! -Era o grito do chefe do trem e a senha para a irmandade se esconder no banheiro. Ia me esquecendo de dizer, meu pai não tinha dinheiro pra pagar todas as passagens. Por sorte tudo deu certo. Depois de muitas horas de viagem e paradas em várias estações, chegamos ao nosso destino. Numa questão de minutos, descemos da “Maria Fumaça”, sentando em cima das malas, ao lado daquela estação.

Aí é que entra na história aquela tal “Jardineira”. Para quem nunca ouviu falar, era quase que uma mistura de micro-ônibus com “van”,nem uma coisa nem outra, só sei que levava gente. Com aquele focinho comprido e as laterais todas moduladas, mistura de lata e madeira, era feia, mas charmosa. Enfim chegou na estação aquela tal da jardineira, que iria nos levar até o lugarejo mais próximo. Era um momento de glória, o ponto alto da viagem, pois sabia que ao final da linha estariam meu tio e alguns primos, com os cavalos arreados, a nossa condução para o sítio. Meu pai era amigo do “chofer”, que o recebia aos abraços, fazendo toda questão que ele fosse na boleia, pra por as conversas em dia. Me fazia sentir um orgulho danado!

            No sítio me sentia no céu, pois todos gostavam da gente, tratados com toda a pompa, além da comida farta, era tudo muito bom. De dia subia em mangueiras, me lambrecava com as frutas, tirava leite das vacas, montava os bezerros mais mansos, banhava no Rio Vermelho, sem falar nas brincadeiras, ao lado do casarão velho, construído pelos escravos. À noite, sob a luz de lamparinas, era hora de ouvir histórias, quase sempre de fantasmas, contadas pelos mais velhos, que juravam ser verdade, só pra meter medo nas crianças. Só sei que ao final das férias, que duravam mais de mês, retornava à minha cidade, louco para voltar às aulas, cheio de histórias pra contar. E não havia tristeza, pois sabia que nas férias seguintes tudo aconteceria de novo.”

Às vezes, nos dias de hoje, me deixo levar nos meus sonhos, refazendo todos os caminhos, até chegar à estação.
Lá, tal qual era antes, vejo a velha jardineira. E como grata surpresa, estão a me esperar também pessoas com quem vivi os meus melhores momentos. À frente, com largo sorriso, estão meu pai e minha mãe, depois os tios e primos, aqueles entes queridos, muitos deles já se foram. Depois de muitos abraços, embarco de novo em meus sonhos, na velha “Jardineira Encantada”.


Imagem antiga da Estação de Silvânia - Go


“Minha modesta homenagem à “família Vieira Machado”, que se reúne nesse mês de outubro, em confraternização, na cidade de Silvânia, onde passei os melhores momentos de minha infância. Àqueles que pertencem à minha geração, à tia Helenice, guerreira, aos meus tios e primos, que já nos deixaram, e em especial aos meus pais, dedico esse modesto texto, que relembra com saudades as vivências de muitos de nós, nessa querida cidade, há algumas décadas atrás (extraído de uma coletânea de contos, que ainda está sendo produzida: “Reflexões & Delírios da Sensatez”).               O meu abraço fraterno a todos os parentes, de todas as gerações! 
                                                                                             (CLÓVIS).


Texto do autor Clóvis Vieira Machado


Para conhecer mais textos do autor siga: https://www.wattpad.com/story/123877731-reflex%C3%B5es-e-del%C3%ADrios-da-sensatez?utm_medium=link_copy&utm_source=widget




Espero que gostem desse texto tanto quanto eu e não se esqueçam de deixar a opinião de vocês nos comentários.
Vamos dar apoio a esse novo autor incrível que está surgindo...





Beijos e até a próxima ♥♥♥

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